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Reflexões sobre ”O assassinato de Cristo” de Wilhelm Reich

                                                                                                                                      Julho de 2015

    A psicologia é uma ciência muito rica para que fique limitada somente aos consultórios particulares. Na verdade, seu campo de conhecimento pode ser aplicado a qualquer segmento que tenha o ser humano como agente: hospitais, escolas, prisões, todo tipo de empresa, trânsito, serviço militar, área jurídica, esportes, sindicatos e associações, clínicas das mais diversas especialidades etc. A lista é interminável, porém, a área que mais me chama a atenção depois da clínica é a psicologia social, pois ela nos leva à reflexão das relações entre os membros do grupo social ao qual estamos inseridos, suas raízes históricas e o tipo de pensamento cultural que foi construído ao longo do tempo. Podemos dizer ainda que a psicologia social se envolve também com a sociologia e a antropologia com o intuito de compreender o homem no seu contexto social.

   Os primeiros estudos sobre grupos sociais foram realizados no final do século XIX pelo psicólogo e cientista social Gustav Le Bon (1841-1931), autor do livro Psicologia das Massas (1895). Após a leitura de Le Bon e alguns outros teóricos do assunto, pude constatar que o comportamento do indivíduo inserido no grupo é conduzido por uma força alienante e violenta, o desamparo existencial e a cultura do consumo contribuem para o equívoco em relação aos valores do indivíduo, a cultura manipula fantasias, age no imaginário popular e faz com que o indivíduo aceite a superficialidade do “espetáculo” e esqueça aquilo que é essencial na vida. O mercado utiliza a mídia para confundir o psiquismo do indivíduo e valorizar o que é efêmero.

    Conforme Le Bon, quando uma pessoa está inserida em um grupo, apresenta características que não possui: PODER INVENCÍVEL, CONTÁGIO e SUGESTÃO. O indivíduo passa a ser influenciado por uma alma coletiva, como se estivesse em um estado hipnótico, perdendo suas próprias características e apresentando qualidades medíocres regidas pelo desejo inconsciente.

    É fácil observar isso nas saídas dos jogos de futebol, quando as torcidas organizadas entram em confronto e passam a agir de maneira irracional.

    Ao ler o livro “O assassinato de Cristo”, de Wilhelm Reich, pude lembrar das observações de Le Bon e de como seu entendimento vem contribuir para as reflexões do livro.

    Compartilho com vocês as ideias que o texto me inspirou e tento mostrar aqui a relação das observações de Reich com o conhecimento atual da psicologia social.

   O livro fala sobre a nossa incapacidade de nos entregarmos ao amor, de como temos medo da liberdade e fugimos ou afastamos aquilo que realmente queremos. Dificilmente conseguimos ser fiéis aos nossos desejos, ficamos dando voltas, sobrevoando nossos medos e revivendo a repressão que sofremos ao longo da vida. Procuramos algo que nos liberte, mas quando encontramos, matamos a possibilidade da conquista. Preferimos viver vidas vazias em vez de nos aventurarmos ao desconhecido.

    Uma questão me veio à mente ao ler o livro: de acordo com a história cristã, Pôncio Pilatos deixou a critério do povo a decisão sobre matar ou salvar Jesus. E o que o povo fez? Matou o salvador e salvou o ladrão, Barrabás. Transformaram a verdade em crime e o crime em verdade.

     Será que isso tem alguma relação com a maneira que escolhemos nossos governantes na atualidade?

     Já não está na hora de condenarmos os ladrões e salvarmos o amor e a verdade?

    De acordo com a história, o povo foi covarde ao eleger um representante inocente para morrer pelos seus pecados. Mataram num dia para glorificá-lo no outro. Essa é a doença emocional de que Reich tanto fala: matamos Cristo porque suas virtudes eram “agressivas” demais em contraste com nossos defeitos. Não suportamos ver o quanto a vida de Jesus era natural, potente e livre. Esse poder denuncia nossa mesquinhez, nossas fraquezas e mazelas espirituais e morais.  Criamos leis para viver, mas matamos o amor a todo momento. Nos identificamos com o criminoso e assassinamos aquele que poderia nos salvar.

  Quando o homem se aproxima da verdade e está prestes a descobrir a chave da prisão social do condicionamento neurótico, ele se enche de angústia e recua diante da possibilidade de ser livre e sentir prazer.

   O mundo está cheio de almas vazias procurando preencher seus abismos com sensações fortes, mas artificiais e superficiais.  A humanidade nunca quis encontrar um salvador. Ela prefere viver na expectativa da busca, da ausência, da falta, para poder ter algo a reclamar. Se o salvador aparece, a humanidade o mata ou o chama de louco, para que o lugar permaneça vazio e a chama da carência continue acesa. A multidão está adormecida e não quer acordar. Prefere viver na passividade do sonho do que lutar na realidade.

    Como o povo de Israel e nós mesmos, enquanto continuidade do povo ocidental, fomos estacionar nesse deserto do imobilismo?

    A resposta é: através de toda a repressão que sofremos desde o nascimento, aliás, desde a gestação ou da fecundação, considerando a intensidade do amor investido neste ato. A repressão congelou a nossa capacidade de amar e de receber amor. Nos afastamos da natureza externa e interna. Aprendemos a rejeitar o prazer e nos contentamos com as sobras. Vivemos na busca de uma felicidade idealizada, mas não queremos, de fato, conhecer o caminho que nos leva até ela.

    Nossas ações costumam ser contrárias àquilo que desejamos: se queremos a paz, criamos o mais fantástico arsenal bélico com a ilusão de que iremos garantir a paz, se queremos a saúde, adotamos meios doentios de viver, de nos alimentarmos. Criamos um ambiente de conflito e competição onde deveria existir cooperação, perdemos a capacidade de enxergar o outro, nos consideramos solidários, mas sentimos raiva quando a miséria bate na janela do carro pedindo um trocado.

   Queremos ser aceitos no reino de Deus, mas não queremos adotar a conduta praticada no reino do céu. Querer ser salvo parece ser suficiente para fingir nossas virtudes. Como poderíamos compreender um reino sem a necessidade de um rei autoritário ou um cavaleiro em um lindo cavalo branco segurando sua espada ensanguentada?

    “Haverá os que dirão que Cristo mereceu ser crucificado”, afinal, quem mandou querer encher a vida de amor, mostrar o quanto se pode ser livre quando se segue o caminho da virtude? Quem mandou querer salvar a humanidade de seus pecados? O homem só queria continuar vivendo afundado na lama e Jesus foi um rebelde contra o sistema sujo, de homens mascarados.

    O homem só aceita a verdade após esta ter sido deformada e diluída. Sendo assim, não se trata mais da verdade. Procuramos respostas complexas porque não queremos enxergar os detalhes na simplicidade. Aquilo que é simples parece não merecer valor e é ignorado. Jogamos no lixo nossa possibilidade de salvação quando proclamamos a verdade, mas não vivemos a verdade.

    O pensamento irracional do assassinato de Cristo é: já que nunca poderei ser como ele, então é melhor que ele não exista.

    Aproximando o pensamento à alegoria da caverna, de Platão, o homem moderno procura viver uma imagem refletida no espelho e não na vida real. O reflexo da imagem limita a consciência do homem e permite que ele viva somente dentro do limite da moldura, preso às suas crenças e congelado em suas emoções.

    O homem elegeu Cristo a um messias, lhe atribuiu o papel de líder religioso, implorou por milagres, se encheu de esperanças por ter um representante que preenchia seu vazio, mas o próprio homem o matou crucificado.

    Estamos matando Cristo até hoje sempre que negamos uma vida natural às crianças, quando nos esquivamos do prazer, enganamos o próximo ou fugimos do amor. Temos a necessidade de nos encher de esperança para que possamos ficar apenas na espera, sem procurar uma transformação pessoal, sem perceber a importância da energia contida no amor.

    Sem amor seremos sempre prisioneiros de um modo artificial e doentio de se viver. Seremos escravos em pleno século XXI. Para que possamos ver Cristo de frente, devemos aprender a enxergar a nós mesmos. Após esta visão poderemos reconhecer Cristo e Deus em nossos corpos.  Quando aprendermos a acessar essa energia, esse oceano de potência, deixaremos de temer a nossa própria força.

    Essa é a angústia do homem, o medo da liberdade diante do poder de decidir o próprio futuro, de fazer as próprias escolhas. Diante disso procuramos um representante, um salvador que possa aliviar nossa dor e nossa responsabilidade. Transferimos nosso poder para algo que está além de nós. Preferimos acreditar numa intervenção externa do que manifestarmos a potência em nós mesmos. Pedimos por bênçãos quando poderíamos mudar nossas ações e termos uma vida mais harmoniosa.

   Cristo foi um professor que tentou ensinar o caminho do amor, mas o povo queria mais que isso e normalmente é isso o que fazemos quando precisamos realizar algo que nos parece difícil, ou deixamos de lado ou pedimos alguém para fazer por nós e com isso nos afastamos do conhecimento e esse conhecimento poderia nos aproximar da verdade, que é uma função natural da vida. A verdade está em nós e deve ser manifestada assim como a energia. Trata-se de uma arma que favorece o contato com as emoções.

    A verdade é movimento, amor, sinceridade, respeito, honestidade, aceitação, troca, emoção, energia e saúde, sendo assim, adoecemos quando nos afastamos da verdade. A verdade é o único caminho viável. Fora dela só pode haver peste emocional e servidão humana. Sem a verdade transformamos o amor vivo em crença morta e esperamos ressuscitar a salvação da nossa miséria. Sem a verdade limitamos nossa liberdade e dificultamos nosso autoconhecimento. Com a verdade podemos aquecer nossas emoções congeladas e encontrar o fluxo da vida saudável.

    Precisamos “desprogramar” nossa mente equivocada, abandonar os dogmas que nos impedem de ir além, de enxergar o óbvio e perceber o quanto a vida é rica, o quanto somos potentes e não precisamos de heróis para nos salvar. A natureza da vida humana é perfeita e funciona de maneira harmônica, basta que nos entreguemos ao fluxo energético da vida, que possamos sentir nossos órgãos quando respiramos, que possamos alimentar nossas células de maneira consciente, sentindo nosso desejo de maneira pura, assim como Cristo fez.

   Viver sua sexualidade sem repressão, te torna uma pessoa mais satisfeita e feliz. Se você se satisfaz sexualmente, não alimentará fantasias pornográficas porque poderá viver os seus desejos sem culpa ou constrangimento e saberá que a satisfação será ainda maior quando houver amor envolvido.

    Praticaremos o assassinato de Cristo sempre que negarmos o amor em nossas relações. Precisamos estar atentos para não cairmos em erros do passado. Devemos procurar novas respostas para questões antigas, ou aprender a fazer perguntas mais inteligentes e sinceras. Temos a tendência a evitar o essencial e a nos apegarmos ao supérfluo, procrastinando sempre a correção de nossas ações.

    O caminho da virtude, que pode ser muito subjetivo, pode parecer solitário porque aquele que se aproxima da verdade, certamente não será ouvido pela multidão adormecida, mas aquele que fugir da verdade e apresentar maneiras artificiais de viver, provavelmente será aplaudido porque a estrutura do homem encouraçado tem como regra a fuga do contato pleno com os seres e as situações reais. O medo da potência no homem assusta os fracos e reprimidos / oprimidos.

   De uma maneira geral, podemos observar que o homem se sente fraco e submisso devido a constante frustração de sua potência ao longo da vida. A repressão à toda manifestação de vida na criança, no adolescente e no adulto jovem, cria um homem dependente e inseguro, que sempre viverá à espera de um salvador. Na confusão de sua vida imóvel, não saberá identificar o verdadeiro líder de um ditador. Quando perceber que fez escolhas erradas, sentirá raiva do ditador e da vida, mas dificilmente reconhecerá que a responsabilidade pelas escolhas sempre foi sua.

   Em relação a capacidade de sentir, o homem moderno, em sua maioria, substituiu o prazer genital pela atividade cerebral, desenvolvendo formas obsessivas de viver. Racionaliza a vida, não pode chorar e não permite a expressão de seu sorriso espontâneo. Como diz Reich, “amam com seus cérebros e odeiam com seus genitais”. O sexo natural e saudável se transforma em sadismo e pornografia.

    Afinal, o que sobrou dos grandes ensinamentos sobre a emancipação humana?

   Queremos esconder aquilo que sentimos quando, na verdade, o sentimento deveria ser a única forma de expressão. Em vez disso expressamos uma mentira e vivemos na ilusão de encontrar verdades. Fugimos tanto do contato com a verdade que acabamos acreditando que a mentira nos libertará.

    Olhe nos olhos do seu próximo e verá que o que vocês querem é a mesma coisa: evitar a dor e alcançar o prazer. E dentro do prazer está inserido tudo o que é bom para o organismo, desde o acolhimento dos pais, passando por todas as realizações da vida, até o clímax do orgasmo genital. A frustração do prazer impede o desenvolvimento saudável. Isso parece ter se tornado comum diante de tanta insatisfação na sociedade.

    Mas onde encontrar a saída dessa prisão?

   A Constituição Federal Brasileira, inalterada há quase 30 anos, nos garante muitos direitos. Palavras perdidas num mundo globalizado demais. Queremos entender a política e a economia de outros países, mas não entendemos nada sobre a nossa própria dinâmica familiar, sobre nossos direitos e deveres como cidadãos. A saída parece estar na compreensão de nossas frustrações, limitações e desejos, alcançar o desbloqueio da vida livre que deveria pulsar dentro de nós, viver o amor em sua plenitude em todas as esferas da vida, seguir a verdade que se expressa em nossos corpos de acordo com a bioenergia em todo o organismo.  

   Todos procuram a felicidade, o prazer, o reconhecimento e o convívio com aqueles que compreendem as leis básicas da vida. Que possamos partir desses princípios sem nos desviarmos do objetivo. Se desejamos amor, temos de caminhar amorosamente, sempre criando espaço para isso, transformando nossas pesadas couraças.

   Percebendo as superficialidades frias dos círculos sociais atuais, podemos buscar emoções vivas junto daqueles que também buscam o calor do contato humano sem amarras ou limitações que nos congelam na primeira “norma” social vigente.

   O superficial esconde a profundidade da alma e inibe o desenvolvimento do potencial humano. O ego tão valorizado em nossa cultura, é um receptáculo de fraquezas ou de valores deturpados. Esquecemos o essencial da vida e o superficial se torna a regra. Enfrentamos muitas dificuldades, mas o problema não é termos uma dificuldade, mas sim fugirmos da responsabilidade de resolver nossos próprios problemas.

   Se escolhermos seguir o fluxo da vida assim como o homem Jesus fez, abandonando nossas distorções e ilusões, estaremos dando o primeiro passo em direção a liberdade e a transformação.

 

Grande abraço

 

Alexandre Monçores Salvador

Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta Corporal

CRP 05/46554

 

Texto publicado no site Psiconlinews

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