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Está sempre presente na nossa cabeça a esperança de um futuro mais humano e mais gostoso. Volta e meia nos pegamos na expectativa de acontecimentos externos a nós – uma revolução social, um cristo, uma nova fórmula – que alterem o sistema atual e o ser humano.

 

Mas esquecemos que o caráter de cada um de nós está fundamentalmente impregnado de informações que, no correr da vida, recebemos tanto da escola, igreja, família quanto dos meios de comunicações e dos que estão ao nosso redor. E que nós mesmos estamos colaborando para a manutenção da moral atual, quando nos atos e encontros de toda hora vamos transmitindo nossos preconceitos aos nossos filhos, amigos, vizinhos, colegas de trabalho.

 

Quase nunca nos lembramos de transformações que estão dentro do poder de atuação de cada um de nós. Como se as sonhadas transformações sociais excluíssem as atualmente possíveis transformações pessoais - quando na verdade se complementam.

 

Das observações destes fatos veio a vontade de saber o que é necessário para o ser humano individual - eu mesmo - tomar consciência da irracionalidade de falsas verdades atuais, e alterar o seu - o meu próprio – comportamento. Na busca de um ser humano emocionável, lúcido, saudável, autônomo, vivo. É sobre este homem novo que procuramos refletir.

 

Veneno para Crianças

 

Num mundo tão maluco como é o que vivemos, a todo momento me pego querendo que outras pessoas se modifiquem, para que este mundo seja modificado. E quase sempre a alteração de comportamento de outras pessoas está fora do meu limite de atuação.

 

Gostaria que as pessoas que detêm o poder público fossem racionais e humanas, sábias, atuantes, ternas e de bom humor. Mas não tem jeito, não conseguem enxergar muitas soluções que parecem óbvias a pessoas que permanecem vivas.

 

Um exemplo próximo a todos nós é a televisão, com programas influindo diretamente no comportamento de quem os assiste: moralismo, o preconceito, a violência, a fofoca quase sempre presentes. E se são crianças os espectadores, a tristeza se multiplica: quase 24 horas por dia a televisão está deformando adultos do futuro.

 

O homem aprende do que vê, ouve, tateia, cheira, bota na boca e sente. Desde criança transforma-se no que lhe é apresentado como modelo.

 

Enfim: o homem amanhã deverá ser fruto do que hoje aprende e sente. Quem hoje vê na TV a violência como ato rotineiro, talvez rotineiramente conviverá com a violência. E naturalmente outros exemplos de todos os momentos contribuem também para a deformação de homens de amanhã. Ontem mesmo não nos disseram que éramos a esperança do futuro? Nós não somos marcados pelos modelos que nos foram apresentados? O futuro de ontem não é agora?

 

Sinto-me impotente diante de tantas mudanças necessárias: o meu poder de influência sobre o atual estado das coisas é mínimo. O que fazer?

 

De tudo isto e de não sei o que mais, veio a necessidade de refletir sobre um homem novo. Falo por mim, cheio de dúvidas. Sem a certeza absoluta nas reflexões e nos resultados. A certeza de agora, o que acredito agora, tento traduzir.

 

Proibição de Emoções

 

Acredito no ser humano recém embrionado como totalmente original, sem nenhum comportamento de origem moral. As regras que vai absorvendo têm suas fontes em seus modelos, que são as pessoas ao seu redor, a vida ao seu redor.

 

Acredito ainda que a cada regra pode corresponder uma limitação de atuação do novo ser. E esta atuação deformada, pressionada de fora - ou esta atuação suprimida - gera sentimentos, emoções. Que podem ser de raiva, medo... Estas emoções, por sua vez, necessitam ser expressas.

 

Assim, muitas vezes, quando são expressas estas emoções e sentimentos - percebidos socialmente como coisa ruim - acontece de serem proibidas por outros seres humanos com quem convive este novo ser. E, em função destas proibições, o novo ser tende a se sentir incomodado, ridículo, inseguro.

 

A partir de então, para evitar estes desagradáveis sentimentos reativos, o novo ser aprende a evitar as emoções originais, geradoras de atuações de repressões externas. O novo ser evita as emoções originais, internaliza a repressão.

 

Como evita as emoções? Alterando a respiração natural, enrijecendo a parte do corpo que for necessária enrijecer para que a emoção seja suprimida. Até que a repetição constante deste enrijecimento torne a parte do corpo cronicamente enrijecida – quando da sensualidade do requebro, por exemplo, parando de requebrar, endurecendo a musculatura pélvica. Para sossego dos pais (viado meu filho não vai ser!), da igreja (alma em estado de graça, assexuado, sem pecados, passivo e submisso...), do quartel (homem tem que ser duro), dos que exploram (operários escravos).

 

Recuperar o jogo dos quadris, outras sensações, sentimentos e emoções, implica numa recuperação da mobilidade da parte do corpo enrijecida.

 

Trabalhar o corpo, a cabeça, recuperar a flexibilidade perdida tem sido difícil, às vezes quase impossível. Acredito – pelas vivências sinto - que recuperar emoções, sentir emoções pode ser inicialmente doloroso. Em seguida, atraente, gostoso, gratificante.

 

E quando as emoções gostosas pintam, as ações são mais produtivas. Soluções mais claras, humor mais leve, comportamentos mais racionais. E quando do avesso, da contenção de emoções, restam mesquinharia, burrice, mau humor invadindo a vida.

 

Agir, alterar comportamentos já rotineiros, recuperar as próprias emoções, acredito ser a base para a tentativa de trabalhar pela autonomia de outros seres humanos, emocionáveis como nós.

 

Certeza absoluta, nenhuma: o que aqui tento relatar tem a intenção de passar informações a pessoas que detêm o poder de refletir. São anotações pessoais, frutos da observação constante: acredito que possam representar verdades.

 

Formação de Caráter

 

Quando nasce, às vezes sofre já no parto. É separado da mãe, único ponto de referência até então. Aplicam-lhe substâncias químicas: líquidos nos olhos, pomadas na pele, vitaminas artificiais pela boca. “Remédios”. Deixam-no sem mamar na mãe. Às vezes a incubadeira, cesariana, fórceps. Reclama como sabe: chora.

 

Seu choro não é entendido, e seu choro é sua maneira de se expressar. Tem medo. Como defesa, naturalmente se contrai. O ato de contrair se dá com o enrijecimento de musculaturas. Se uma contração muscular é repetida diversas vezes, a tendência é se ter uma contração muscular crônica. Ou seja, um endurecimento constante (fixo) da musculatura. Que corresponde a uma alteração do comportamento original.

 

Enfim, fisicamente, intelectualmente, emocionalmente o ser humano já é induzido a endurecer-se desde quando nasce. Este endurecimento funciona como uma defesa contra as tantas agressões inesperadas e repetidas que sofre. Em resumo: a uma situação de perigo corresponde uma reação muscular de contração. À repetição de situações de perigo semelhantes, correspondem contrações musculares semelhantes. A repetição de uma contração muscular torna o músculo cronicamente rígido. Ou seja: um enrijecimento muscular (físico) corresponde a uma fixação de uma repressão emocional, intelectual.

 

Na verdade, no corpo de cada homem está escrito sua história. No corpo de cada homem, individualmente.

 

Vejamos: quando começa a se expressar, a criança já é alvo de repressões por parte das pessoas que a rodeiam. Um exemplo: uma criança de dois, três anos. O brincar com o seu próprio corpo lhe dá sensações. Em princípio, de prazer. Ao brincar com os seus órgãos genitais, uma pessoa lhe diz: “pára com isto menino. Que feio.”. Se a criança continua, é alvo de uma sanção – um tapa, um falar enérgico. “Tira a mão daí!”. Ao lhe ser proibido o prazer, a criança reage. Primeiro, com raiva. Vê-se impotente diante do mais forte. Então chora.

 

Mas toda vez que chora, lhe é dito: “ih, bobo. Homem não chora.”. E toda vez que lhe é dito isto, sente-se ridículo. Para evitar a sensação desagradável do ridículo, corta o choro. A maneira de cortar o choro é engoli-lo. Para engolir, tem que contrair musculaturas da garganta.

 

Situações que provocam choro são repetidas constantemente. Situações de corte de choro são também repetidas constantemente: ou seja, situações de contração de uma mesma musculatura são muitas vezes repetidas. Contrações musculares repetidas geram contrações musculares crônicas. No exemplo do choro, quando o choro é engolido repetidamente, a musculatura correspondente se endurece. Aí então já não é necessário se esforçar para cortar o choro. Ele já está definitivamente cortado. A criança virou “homem”.

 

Só que o endurecimento muscular - efetuado para se dar o corte do choro – impede também o se expressar plenamente: o cantar a todo vapor, o falar, o gritar. Impede muito mais que só o choro.

 

Inúmeras outras situações repetidas a todo momento, no dia a dia de cada um de nós, vão “assassinando” o ser humano natural e fazendo crescer o homem “civilizado”. O processo se inicia com as crianças, cresce com os adolescentes e se solidifica com os adultos.

 

Situações repressivas continuam a acontecer no dia a dia, com adultos trabalhadores, quando poder é utilizado para fazer prevalecer uma idéia ou uma ação. A todo momento poderosos de diversos níveis dão ordem que têm a função de – aparentemente -  fazer produzir mais. Os oprimidos*, na maioria das vezes sem condições de agredir diretamente quem os oprime, inconscientemente ou conscientemente, se “vingam” de maneiras as mais inesperadas. Mão de obra mecânica, omissão, trabalho malfeito. São resultados de desprazer no trabalho e na vida.

 

A mente contra o ato do corpo. Resultado: a burocracia, o mal-estar, a dissociação trabalho-prazer.

 

O Trabalho como Prisão

 

Para tentar mudar a situação, o poder reage com o controle e o castigo. A imagem antiga é a do feitor com o chicote. A imagem atual é a do relógio de ponto, do corte do salário, da suspensão, do controle de papel. Tanto controle se torna necessário, que uma grande quantidade de mão-de-obra é destinada a esta tarefa. O volume do trabalho de controlar pede utilização de tecnologia avançada. Entram os computadores. São formados especialistas em controles. Faz-se a ciência do controle. Isto já são fatos no Brasil, em boa parte do mundo.

 

Como resolver então o problema do aumento de produção, dito tão necessário? Em última instância um dos fatores decisivos para o aumento de produção é a mão-de-obra. Em mão-de-obra leia-se homem.

 

A mão-de-obra deverá ter a sua produtividade aumentada. Poderá também ter o volume de tempo de trabalho aumentado.

 

Sigamos pelo aumento de produtividade: isto com certeza aumentará a produção. Como fazer com que isto aconteça? Tentando fazer com que a mão-de-obra participe por iniciativa própria? Tentando controlar o seu trabalho? Enfim: mão-de-obra autônoma ou mão-de-obra mecânica?

 

Para a formação de autômatos, reforçar o controle e o castigo é um caminho. Para a formação de autônomos, temos que refletir.

 

Anotações sobre a Autonomia

 

Nos últimos cinco anos tentei me aproximar de assuntos ligados à relação corpo-mente, no ser humano. Acredito, como outros observadores, que, via de regra, o corpo é um espelho da história de cada um. A barriga, o olhar, o andar, o falar, são sinais da história de cada um. A nuca que dói pode ser sintoma do músculo que endureceu de tanta tensão provocada, por exemplo, pelo medo. A boca rigidamente fechada pode refletir a raiva tão longamente contida.

 

Acredito também, pela observação e alteração de mim mesmo, que a situação pode ser mudada. Um lado gratificante é a ampliação da percepção, o acesso a novos olhares. Uma boa e honesta conversa, também consigo mesmo. Parece, porém, ser indispensável tentar entender profundamente o ser humano, para apoiá-lo no seu novo parto. Para ajudá-lo a aprender a andar, pensar, agir, ser autônomos.

 

Antes, ou paralelamente, cada um por si tentar perceber o próprio corpo, suas emoções, sua própria mente, acredito ser mais do que necessário a todo aquele que tenta perceber os outros, orientar a outros, dirigir. Desenferrujar-se, aprender a lubrificar-se, tornar-se autônomo: um sonho possível de realizar-se.

 

Transformações Pessoais

 

A revolução social não exclui a revolução individual: na verdade se complementam. Acredito que transformações pessoais sejam mais fáceis num lugar onde os problemas econômicos sejam resolvidos em função do bem-estar dos seres humanos. Em termos práticos, num lugar onde o que é produzido é distribuído justamente entre os que nele vivem.

 

Mesmo não sendo estas condições em que vivemos, são possíveis transformações pessoais revolucionantes. Um ponto de partida acredito ser tomar consciência de origens de fatos incômodos atuais. Em seguida, a recuperação da capacidade de sentir emoções. Acredito ainda que ou o prazer ou a raiva ou medo sejam a motivação principal de alterações de comportamento.

 

A seqüência poderá ser: existir um incômodo e a percepção e busca das primeiras origens do incômodo pelo incomodado. Após esta tomada de consciência, recuperação da mobilidade física natural e, como conseqüência, recuperação da capacidade de sentir, se emocionar. Em decorrência dos sentimentos assim vivenciados, transformações pessoais difíceis de se prever.

 

A Busca das Origens dos Incômodos

 

Para isto, rever as verdades talvez seja um caminho. As verdades sempre devem ser verificadas se permanecem verdades. As verdades atuais devem ser repensadas. Para ser verdade somente o verdadeiro, enquanto verdadeiro. Para deixar de ser verdade o preconceito, o moralismo, o basicamente falso.

 

Tudo que a igreja católica** nos ensinou não foi verdade durante tanto tempo?

O prazer a gerar o pecado?

O pecado a gerar o castigo?

A possibilidade de castigo a gerar o medo, a culpa?

A culpa, o medo a gerar submissão?

 

Sentir prazer? É pecado! Namoro, sonho, raiva, beijos? Pecados! Veniais ou mortais, do tamanho da culpa. Sentimentos e sensações suprimidos pelo medo, durante toda a vida. E cada vez mais insensível, mais homem, mais burro.

 

O correto, nos diziam, era a submissão. Submissão hoje, paraíso amanhã. Nada de aqui e agora. O passado com a “cultura”, o futuro com o “juízo final”. Com tanta pressão só nos restava, no presente, o medo.

 

E quantas verdades tão duramente implantadas em nós, na nossa infância e no correr da nossa vida, ainda permanecem inconscientemente como verdades? Mas se as repensarmos, formos às suas origens, com certeza os preconceitos deixarão de ser, as sensações de ridículo perderão suas fontes: as falsas verdades atuais.

 

Procurar e praticar os conceitos radicalmente humanos, ou adaptar-se aos preconceitos existentes? Dura luta. E esta luta tem uma importância maior do que a que atualmente lhe é dada. Atrás do preconceituoso, do moralista, está o ser mecânico.

 

Repensar as verdades estabelecidas, repensar como ato cotidiano, refletir em cada ação, isto é possibilidade de alterar o nosso mundo, ampliá-lo. E as verdades que construímos hoje? Para os nossos filhos, para os nossos companheiros de trabalho, vizinhos, amigos, nossos espectadores?

 

Para que sejam realmente verdades não há que separar o natural, fazer renascer o natural, ver a sua utilidade, dar-lhe um destino? Com certeza a revolução pessoal envelhecerá se as raízes não forem postas à mostra: exercitar o pensamento, refletir sobre os desejos expressos pelos que estão ao nosso redor. Não tentar moldar as crianças, jovens ou trabalhadores às nossas verdades atuais, tão duvidosas. É gastar muita energia para nada, é entortar o que cresce, é torná-los semelhantes a nós, no que temos de pior. Não é revolução: é manutenção da moral paralisadora. Da mesma moral que nos angustia, que nos coloca contra os nosso desejos mais naturais.

 

Viver o Presente

 

Da reflexão sobre nosso próprio comportamento poderíamos perceber que também é revolucionante respirar naturalmente, deixar as emoções se expressarem, não aceitar submissamente impedimentos morais. Deixar o tesão ter voto, a ternura, o desejo ter volto. Respeitar o próprio corpo, a própria mente, a própria vida nos seus atos cotidianos. Que também é revolucionante procurar caminhos para não ter que trabalhar em coisas que desinformam ou que contribuem para a manutenção dos que autoritariamente detêm o poder.

 

E, paralelo à reflexão, do trabalho consciente com o corpo,  no sentido da recuperação da sua mobilidade natural, talvez pudéssemos perceber emoção há muito tempo suprimidas.

 

Esta auto-revolução pessoal, de refletir e de trabalhar o próprio corpo, acredito que esteja dentro da área de atuação do ser humano individualmente: viver o presente, procurar as gratificações aqui e agora, buscar o homem novo em cada um de nós.

 

Maputo, 1981

 

*

Oprimidos também se tornam opressores. Acredito que o opressor de hoje tem origem em opressões anteriores. Quem deseja ardentemente o poder não estaria procurando inconscientemente suprir um vazio antigo – por exemplo, o peito que precocemente lhe retiraram? O exercer o poder de mando não representaria o cobrar do mundo o que se percebe como devido pelo mundo? Cobro o que me devem.  Estes e ou quais seriam os motivos que fazem tantos oprimirem e tantos se submeterem a opressões?

 

**

Hinduísmo, budismo, islamismo, judaísmo, cristianismo. Católicos, protestantes, kardecistas, umbandistas, candomblecistas. Batistas, metodistas, pentecostais, quacres. Xintoístas, taoístas, confuncionistas. Não tenho experiências de outras instituições religiosas. Sei que minha vivência pessoal na cultura católica mais contribuiu para minhas limitações de que para meu desenvolvimento integral -  seja emocional, intelectual ou espiritual.

 

Isto naturalmente não exclui o bem estar que cada uma das religiões possa ter propiciado a outros.  Acredito que ninguém melhor que cada um para melhor saber de si.

 

Rio de Janeiro, 2005

 

Luiz Fernando Sarmento

 

 

Oprimidos
Igreja

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